sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Olhos que queimam


      A chaleira piou. Levantou-se vagarosamente da sua poltrona vinda dos extremos e se dirigiu até a cozinha. Aspirou o aroma, desejou que o gosto fosse menos pior do que o dia anterior e despejou o líquido em sua xícara de porcelana azul e detalhes florais em branco. Olhou ao seu redor, para a sua cozinha ornada de teias de aranha, panelas dependuradas e potes com comida, que se ainda existem, estão impróprias para o consumo.  Seu olhar encontrou a janela que a atravessou para observar o jardim com árvores de folhas secas e ervas daninhas. Calculou o tempo que faltava para o surgimento da lua. Talvez dois ou três sóis.

     Sentou-se em sua mesa para dois desgastada pelo tempo e bebericou o chá de el-du. O líquido quente aqueceu seu corpo e o fez se lembrar de sensações há muito esquecidas. Sentia-se muito saudoso nesse dia e pensou no que poderia ter evocado esses pensamentos e sentimentos involuntários. Sem muito esforço concluiu que seu próprio corpo era a lembrança, uma lembrança dura e fria animada pela bebida quente. E a bebida quente queima.

       Ficou um longo tempo a observar a xícara e a pensar de onde viera. Parecia ser feita da mesma matéria de seu corpo. Feita de passado. Muitas luas atrás. Desistiu do chá e gostaria de ter desistido de mais coisas. Antes. Antes de tudo. Sentiu uma brisa passar pela cozinha mas não se lembrava de ter deixado porta ou alguma janela aberta. Sabia que não era tão imprudente. Levantou os olhos e não mais viu seu jardim, agora via seu reflexo no vidro. Via mais olhos que deveria. Olhos quentes. Olhos que queimam.


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